17.2.09

Exame

Há dias em que nos sentimos um belo naco de merda.

São dias em que não sabemos propriamente o que andamos por cá a fazer, em que acusamos todo o tipo de carências e dúvidas e tudo o mais que aumente a miserabilidade da nossa existência. Dizem os entendidos que não passam de fases, pela própria natureza, portanto, passageiras, mas que, como as ondas do mar - analogia preferida dos que sobre isto discorrem - andam num permanente ir e voltar.
Pela minha parte vejo-as como carraças que se nos colam à pele, que nos sugam o sangue - uma boa analogia para a vontade de viver ou, pelo menos, de ser feliz -, que nos fazem sentir mais vulneráveis do que um estudante perante uma folha branca num exame escrito.
A vida, afinal de contas, é um exame escrito permanente, em que o que nos é pedido não passa sempre de um resumo do que outros fizeram, do que outros disseram que deve ser, do que outros destinaram para nós. E perante isto há dias em que eu fico suspensa, a caneta na mão, o ar a encher-me o peito enquanto aguardo que as ideias se dignem salvar-me do abismo para onde me inclino mas as ideias, essas putas que se deitam nas cabeças de tanta a gente, não me tomam a massa cinzenta. E ali fico eu, o peito eventualmente menos inchado a cada expiração, a folha cada vez mais branca, reluzente, ofuscante à minha frente. Ali fico eu, especada, muda, imóvel, frágil.
É nessas alturas que a vida parece um poço sem fim, escuro e húmido, de onde não consigo sair porque as paredes, cobertas de musgo, me fazem escorregar as mãos. O cheiro é pútrido, como o de todos os poços abandonados para onde, ao longo do tempo, os homens foram atirando o seu lixo, tudo o que não queriam, o que lhes sobrava, os estorvos. Há dias em que, mesmo no fundo do poço, nos desviamos, mas há dias em que não conseguimos evitar sermos soterrados pelos escolhos.

É precisamente nesses dias que nos sentimos um belo naco de merda.

Ainda fiquei a olhar durante uns tempos para aquelas letras desenhadas naquela folha branca. Sentia-lhes o cheiro a desespero no desenho uniforme. Dobrei o papel e voltei a metê-lo no envelope, que guardei dentro de uma gaveta do móvel da sala. Olhei pela janela. O vento rugia, as folhas desprendiam-se das árvores para encher os esgotos, o dia estava escuro. «Mau tempo para um funeral», pensei. Depois, enfiei-me dentro da gabardina preta e pus-me a caminho do cemitério. Foi então que a chuva desatou a bater as vidraças com raiva.

© [m.m. botelho]