16.5.08

A sétima curva


Wassily Kandinsky | Moscovo I | 1916
Tretyakov Gallery | Moscovo | Rússia


À sétima curva, ouviu os pneus do carro derraparem no asfalto. Sentiu os músculos das mãos rígidos, como que absolutamente imersos em goma-laca. Viu-se incapaz de controlar o volante girando entre os dedos. O som da borracha a derrapar no alcatrão ensurdeceu-a. Bateu com a cabeça no tejadilho, o cinto de segurança começou a asfixiá-la. O corpo sacudia-se ao ritmo das voltas que o carro dava. À sétima curva despistou-se.
Não soube contar o tempo até que parou, mas contou cada um dos rodopios. Um, dois, três, quatro. Ouviu o pára-brisas quebrar-se. Susteve a respiração o mais que pôde. O sangue começou a escorrer-lhe do nariz, quente, pastoso. Pensou que partira um braço, talvez uma perna, talvez as duas. Os pedais enredaram-se-lhe nos pés. Achou-se presa numa gaiola de lata e fumo.
Nos minutos que se seguiram ao embate lembrou-se de todas as pessoas a quem já não via há muitos anos. Pensou como o tempo e a distância, por muito curtos que sejam - podem divorciar-nos uns dos outros. Tanta gente do outro lado da cidade, apenas a meia dúzia de passos, e há tanto tempo se não viam. O turbilhão das manhãs de trânsito, o frio da neve a entranhar-se nos ossos, o cansaço dos dias de trabalho a acumular-se sobre o casacão pesado. Tantos e tão genuínos motivos para regressar rapidamente a casa e adiar uma, outra, todas as vezes o cruzar de olhos com tanta gente de quem, desfalecendo naquele carro, sentiu repentinamente saudades.
Moscovo parecia-lhe sempre povoada de fantasmas, gente muito magra ou muito gorda, muito bela ou muito feia, muito jovem ou muito velha, mas toda ela desconhecida, gente que deslizava sobre as calçadas escorregadias, gente que mais não era do que manchas na paisagem, que mais não era do que a fumaça que lhe saía das bocas e rasgava o ar frio.
O corpo, dentro do carro, enregelava lentamente. À sétima curva, nem vivalma. Por aquela estrada não passava ninguém. Deixou-se ceder e afogar no sangue que lhe encharcava as roupas. A vista da cidade emoldurava-lhe o rosto maltratado pelo embate. Ao fundo,o turbilhão daquela manhã de trânsito, o frio da neve a entranhar-se nos ossos, o cansaço dos dias de trabalho a acumular-se sobre muitos casacões pesados. À sétima curva, enfim, adormeceu e com ela levou Moscovo inteira na memória.

© [m.m. botelho]

Texto [também publicado aqui] escrito a convite do blogue «A Dobra do Grito», inserido no ciclo «Kandinsky provoca bloggers».