5.7.08

Trouxas de ovos

«Muito bem! Muito bem! Muito bem! Brava!», gritava ela estridentemente, enquanto batia palminhas, de cada vez que a cadela enfezada se punha a fazer habilidades na carpete da sala. Eu sorria, engolia em seco, achava que no fundo até lhe achava alguma graça. A verdade é que não lhe achava graça nenhuma. Por isso é que de cada vez que a porta se fechava atrás daquela matrona eu suspirava de alívio e ia estender-me na cama, os pés para cima, a almofada sobre o rosto e assim ficava durante umas boas duas horas.

Um dia, ela veio, sentou-se pesadamente na poltrona e, muito chorosa, contou-me que a cadela morrera, assim, inesperadamente. Disse-me que suspeitava do vizinho do lado, «Um careca que passava a vida a ameaçar que qualquer dia lhe cortava o pio. E não é que cortou mesmo?» e depois pediu-me desculpas por estar para ali a levantar falsos testemunhos contra o tal careca que, afinal, agora já era «o Senhor Engenheiro Carvalhal». Eu acenava pateticamente com a cabeça, lamentava com ela a sua perda «irreparável» e estendia-lhe a caixa dos Klenex para se assoar.

Mal se foi embora, agarrei na lista telefónica e sentei-me à escrivaninha. Procurei na letra "C" os Carvalhais e lá apareceu um, felizmente só um, que era engenheiro e morava na mesma rua que ela. Só podia ser aquele o tal careca. Escrevi-lhe imediatamente um bilhete curto mas directo, agradecendo-lhe o facto de ter envenenado o raio da cadela, afinal de contas, um grande favor para a carpete caríssima que cobria o chão da minha sala.

Ela só voltou no mês seguinte. Disse-me que trouxera trouxas de ovos para o lanche e eu odiei-a ainda mais um bocadinho de cada vez que, entre os goles de chá, ela abria a bocarra para engolir de uma só vez cada uma delas. Depois de enfiar nove trouxas de ovos pela goela abaixo olhou horrorizada para o pratinho e disse que nem tinha reparado que apenas sobrara uma e eu nem sequer as tinha provado. Desfez-se em desculpas, como era já seu hábito, e disse que me deixava aquela para eu «pelo menos, lhe sentir o gosto». Eu agradeci como se o gesto dela tivesse alguma coisa de altruísta e não se devesse à mera vergonha de ter devorado a caixa inteira em menos de nada.

Comer de enfiada nove trouxas de ovos haveria de ter, não surpreendentemente, as suas consequências e teve-as. Dali a uns minutos, começou a queixar-se de um mal-estar e perguntou-me se poderia usar a casa-de-banho. Por dentro, explodi um sonoro «não», mas da minha boca soou um simpático «mas é claro que sim», ainda estou para saber porquê.

Ela lá ficou tempos infinitos na casa-de-banho, pensava eu que a ler o monte de jornais que eu lá tinha, alguns com mais de meio ano, perfeitamente inúteis e desactualizados. Entretanto, comi a trouxa de ovos e achei-a deliciosa, não demasiado doce, não demasiado seca, não demasiado minúscula. Fiquei com água na boca para comer outra, mas como já não havia, encolhi os ombros e lambi os dedos, um pouco desconsolada. Encostei-me no sofá e, sem dar por isso, acho que passei pelo sono. Quando acordei, ela ainda não voltara e o tempo parecia-me já muito. Achei por bem investigar o motivo da demora.

A ambulância levou, talvez, uns cinco minutos a chegar. Ela não dizia nada, nem ai, nem ui. Tinha os olhos muito esbugalhados e o rosto vermelho, os lábios grossos cobertos de uma espuma esbranquiçada e as mãos e os pés muito inchados. O médico nem chegou a abrir a maleta, limitando-se a dizer ao enfermeiro que ela já estava cadáver. Perguntou-me o que se passara e eu lá contei a história do chá e das trouxas de ovos.

Os meus vizinhos foram espreitando às portas de casa deles e, depois, invadindo a minha. Depressa se espalhou a notícia de que ela havia comido uma dúzia, vinte, trinta, quarenta, cinquenta trouxas de ovos e que a gula, esse pecado capital tão desprezível, a matara impiedosamente na minha casa-de-banho.

Não sei precisar se dois, se três dias depois, o carteiro tocou-me à porta para me entregar uma carta inesperada.

Agradeço-lhe tê-la envenenado. Assim ela se inquiete nos Infernos tanto quanto nos inquietou na Terra. E mais lhe digo que essa das trouxas de ovos foi de mestre. E assim ficámos quites, n'est pas?

Estranhei a pergunta e demorei-me muito tempo a olhar para o papel. Depois peguei outra vez no envelope e li o remetente. Era um tal de Carvalhal.

© [m.m. botelho]