23.1.07

Cadência imperfeita

Quedou-se assim, suspensa entre uma nota musical e a outra, entre um acorde rasgado e a derradeira inspiração profunda do guitarrista. Mirou-lhe detalhadamente os óculos de massa escura que lhe delineavam os olhos muito para além das olheiras. Sentiu-se cortada e recortada em cada volteio dos dedos compridos, das «unhas de marfim» que cativaram a rainha de Inglaterra. Quis tocar-lhes para saber como tocam na carne as unhas que fazem estremecer o aço das cordas da guitarra. «Portuguesa», acrescentou o avô, «guitarra portuguesa», muito cioso da singularidade do seu país de navegadores que também criam instrumentos.
Deixou-se prender por instantes no corpo debruçado sobre a caixa de ressonância, nos cabelos grisalhos incorformados, nas pernas afastadas do guitarrista. Quando soou o acorde final de «Mar Goês», ergueu a cabeça e viu-lhe nas mãos não a guitarra, a tal «guitarra portuguesa», mas sim o seu coração, sangrando, retalhado pelo aço, tatuado pelas «unhas de marfim».
Percebeu então. Não fora música que escutara, mas os seus próprios lamentos, afinal, a cadência imperfeita de uma vida inteira, a sua, suspensa em cada uma das inspirações de todos quantos por ela passavam.

© [m.m. botelho]