27.11.06

Terna é a noite

© [m.m. botelho] | desenho a carvão | novembro de 2006


Costumava chegar sempre por volta da meia-noite, mais coisa, menos coisa. As costas muito direitas, os cabelos irrepreensivelmente alinhados, a expressão fechada. Encostava-se ao balcão e esperava que eu me abeirasse. Então, sussurrava-me ao ouvido o mesmo pedido de sempre. Depois abria o pacote dos cigarros e tirava um, que segurava entre os lábios. Eu riscava um fósforo e acendia-lho. Ela inspirava longamente e soprava o fumo, para depois, no mais absoluto silêncio, ficar a olhar os círculos diáfanos a contra-luz, até que se elevassem a uma altura em que se confundiam com o negro do tecto.
Ficava nisto muito tempo, cigarro atrás de cigarro. Tossicava de vez em quando, bebia um pouco, perguntava-me as horas.
- Uma e meia.
- Duas e vinte.
- Três e cinco.
Quando o bar começava a ficar vazio, fazia-me sinal para que me aproximasse dela e perguntava-me:
- Importa-se que lhe volte as costas?
Eu respondia invariavelmente que não, que estivesse à vontade, mas nunca lhe confessei como ansiava que os clientes partissem. Seria capaz de desenhar às escuras cada uma das linhas dos seus ombros, cada fio de cabelo a escorrer-lhe das orelhas para o pescoço, cada traço dos vestidos pretos que usava.
Quando todos partiam, ela voltava-se para me pedir mais uns minutos. Eu e uma bebida saíamos, então, detrás do balcão e sentávamo-nos no banco ao lado. Acendia um cigarro e com o mesmo fósforo dava-lhe lume para o dela. Os fumos das nossas expirações fundiam-se debaixo da luz do candeeiro, erguíamos ambos o olhar que depois deixávamos pousar nas mãos um do outro: eu na aliança dela, ela na minha. E perguntava-lhe:
- Acha que as estrelas, lá fora, são sempre as mesmas?
- Não sei. Mas acho que o fumo dos nossos cigarros é sempre o mesmo. Entra e sai dos nossos pulmões, para depois voltar a percorrer o cigarro desde a ponta até aos nossos lábios e voltar a sair. Fumamos sempre o mesmo fumo.
- Às vezes eu fumo o seu, às vezes fuma o meu.
- Mas é sempre o mesmo, não é?
- Sim, penso que sim. Como a luz é sempre a mesma, saltando de estrela em estrela.
Ela apagava o cigarro com zelo religioso, certificando-se de que o lume morria soterrado pelas cinzas e pela força dos seus dedos. Depois voltava a beber e perguntava-me se podia servi-la uma última vez.
Eu acenava-lhe com a cabeça que sim, dava a volta e agarrava nos dois copos que deixara preparados antes daquele cigarro. Ela bebia um pouco, depois olhava para mim e dizia:
- Todas as noites, por esta hora, é infinitamente tarde. Quando esta hora toma conta da noite é sempre infinitamente tarde.
Deixava umas notas no balcão, sempre mais do que as devidas e entregava-me o casaco para que lho pusesse sobre os ombros. Dizia-me
- Boa noite.
e saía.
Eu ficava a vê-la partir, a admirar a cadência, a firmeza, o som seco dos seus passos. Lembrava-me da minha aliança, da aliança dela, ambas a brilhar no escuro.
Era madrugada alta quando eu saía e estava sempre frio demais para a roupa que tinha vestida. Por isso, corria até casa, o suor a escorrer-me da testa no Verão, a minha respiração a enevoar o escuro no Inverno.
Deitado na cama, trazia à memória o tempo em que ela murmurava, enquanto eu a beijava, que à noite era sempre o mesmo beijo, sempre o mesmo abraço, entre os nossos corpos. Voltava a mirar a minha mão, a aliança. Nunca cheguei a perguntar-lhe porque é que não a tirou, depois de nos divorciarmos, e ela também não mo perguntou, embora as víssemos brilhar na mão um do outro, todas as noites, enquanto ela fumava o seu último cigarro, o mesmo cigarro de sempre, que eu sempre lhe acendia.


Nota: o título deste texto segue a inspiração de F. Scott Fitzgerald.

© [m.m. botelho], ao som de Infinitely Late At Night, dos The Magnetic Fields, do álbum i [2004].

It was infinitely late at night / The stars are still out there / But they're all out of light / Don't worry about me, I'll be all right / It's just infinitely late at night
It's still getting later / And later andlater / I feel like I'm in a falling elevator / I'd kill for a drink / But I can't find the waiter / I really believe he's gone home / Oh god I wish I could go home / But it's infinitely late at night
Is this a blackout / Or am I losing my sight? / It should have been noon now, / The sun should be bright / But it's infinitely...
The hour on the bar clock, / It isn't finite / It's all black and white / Without the white / It's just infinitely late at night.