10.9.06

Por um instante que fosse

Mauritus Cornelis Escher [1898-1972] | Relativity [1953]
Mauritus Cornelis Escher [1898-1972] | Relativity | litografia | 1953
M.C. Escher Museum | Den Haag | Países Baixos

Deixa-me respirar o ar que corre
por entre os fios dos teus cabelos,
agarrá-lo
com as minhas mãos
que hoje como outrora são tuas,
talhadas que foram para se enlaçarem
em ti.
Deixa-me sentir o cheiro da aurora que desponta
na alvura de cada um dos teus dentes
e guardá-la,
preciosa,
neste coração que tempestuosamente se esmaga
contra as paredes do meu peito.
Deixa-me sufocar na saliva que te humedece
a língua
e crer
que ainda está desejosa de nós,
dos nossos corpos lado a lado,
adormecidos, esgotados
por entre os lençóis amarrotados
dessa cama que ainda é nossa.
Deixa-me serenar no teu colo,
nesse colo onde ainda repousa
o meu choro incontido
de nada saber.

Dou por mim a duvidar
da existência do real,
do chão debaixo dos pés,
do princípio de Arquimedes,
das camadas da atmosfera,
da sucessão dos dias,
das vagas e das marés,
dos pontos cardeais,
da evidência da morte,
da função aritmética,
da cinética musical,
das luas de Saturno,
da regra de três simples,
das propriedades do ópio,
da relatividade especial,
das estações do ano,
do alfabeto com que escrevo,
da fonética do que digo,
da luz que me estilhaça os olhos,
do meu próprio nome primeiro

mas nunca desacreditei,
por um instante que fosse
na eternidade do nosso amor.

© [m.m. botelho], ao som de , de Jorge Palma, do álbum homónimo [1991].



só por existir / só por duvidar / tenho duas almas em guerra / e sei que nenhuma vai ganhar
só por ter dois sóis / só por hesitar / fiz a cama na encruzilhada / e chamei casa a esse lugar
e anda sempre alguém por lá / junto à tempestade / onde os pés não têm chão / e as mãos perdem a razão
só por inventar / só por destruir / tenho as chaves do céu e do inferno / e deixo o tempo decidir
e anda sempre alguém por lá / junto à tempestade / onde os pés não têm chão / e as mãos perdem a razão
só por existir / só por duvidar / tenho duas almas em guerra / e sei que nenhuma vai ganhar / eu sei que nenhuma vai ganhar