21.4.06

Escrevo-te à noite.

Vincent van Gogh [1853-1890] | Noite Estrelada Sobre o Reno | 1888
Vincent van Gogh [1853-1890] | Noite Estrelada Sobre o Reno | 1888
Musée d'Orsay | Paris | França

Escrevo-te à noite.
Quando as estrelas emergem da escuridão preto-azulada, agarro a sua luz entre dois dedos voluptuosos e corro a aprisioná-la entre as linhas horizontais do meu caderno.
Às vezes, sem querer, deixo verter algum desse brilho por sobre a mesa. Ainda tento sustê-lo entre dois lápis de cor, mas ele prossegue revoltoso, incontido, até gotejar orla fora e se libertar na fímbria.
Ao cair no chão escorre para dentro do soalho rangente. Corro então a abeirar o ouvido às tábuas, na tentativa de ouvir o que deixei de ver. Mas o que ouço é nada.
A luz das estrelas não tem sonoridade quando se perde debaixo do solo e, contudo, brada ao plasmar-se em volteios de caneta nas páginas cândidas do meu caderno. Ouço-a clamar por ti, em gritos que se despregam das letras desenhadas e que são o teu nome, o teu nome em riste, solitário. O teu nome é um sabre que me corta e me faz sangrar num lustro...
Não te escrevo só à noite. Escrevo-te com a própria negridão da noite.

© [m.m. botelho]